quarta-feira, 23 de maio de 2007

Carta à minha filha que perdi


Meu raiozinho de Sol, onde brilha agora o teu sorriso?

Foste prenúncio de tempestade, mas afinal trouxeste a bonança radiosa duma manhã primaveril - e a tua cândida ternura trouxe um mundo de sorrisos ao meu vale de lágrimas.

Foste semente que caíu por acaso em solo fértil de vida e germinou em flor resplandecente - fruto proibido e desejado, que saciou o meu mais puro instinto maternal.

Pequenina semente, sugando a seiva do meu próprio ser, que resistiu e sobreviveu às mais adversas intempéries...

Mas, sim, veio a bonança...

A bonança do teu desabrochar numa manhã fria e cristalinha dum domingo de Dezembro, que o Sol quis aquecer.

O alívio musical do teu primeiro choro - anúncio de nova vida, palpitante e ávida,

A calmia do teu plácido soninho, entre lençóis tecidos do meu amor.

Eu olhei-te...

Tão linda, meu Deus!

Um pedacinho de mim, na suma perfeição duma boneca de porcelana que um sopro divino milagrosamente animou!

...E a minha alma rejubilou e exaltou os Céus, por lhe concederem mais um cantinho de azul.

Eu criei-te.

E como os meus olhos riam, ao olhar os teus, grandes e transparentes de candura!

E os teus cabelos, longos e sedosos, em anéis perfumados!

E a avidez da tua boquinha de botão de rosa, a beber a Vida do meu seio...

E a ternura do teu primeiro sorriso, do evoluir da tua percepção do Mundo, cujo centro era Eu!

Eu... eu, que tanto te amei.

Amei-te extremosamente, com o amor que só uma mãe pode inventar.

Amei-te com a consciência de não lesar ninguém em teu favor; em tempo e atenção, talvez - porque tinhas um maninho ainda bebé e outro mais velhinho, a reclamarem também os meus cuidados, - mas nunca, nunca em amor, porque o amor de mãe é infinito.

Estremecia a minha essência ao olhar a fragilidade do teu corpinho tenro!

Demos as mãos e aprendeste a crescer, a sorrir, a andar, a balbuciar as primeiras palavrinhas...

Palavras ditas naquela vozinha rouca e inesquecível, que me deleitava os ouvidos...
...E aquela que ficou gravada a fogo ardente na minha alma ---MÃE

Aquele apelo impaciente, quando eu não te dava logo atenção - Mãaaa--êeeee!

Aquele grito molhado de lágrimas pequeninas de cristal fundido, quando requerias o meu socorro - Mãe!!

Mãe, mãe, mãe! Quem roubou esse teu meigo apelo da minha vida?

Como posso esquecer esse som maravilhoso que gravaste com beijinhos no meu coração?

Com beijinhos... esses teus beijinhos doces, construídos nos teus lábios de ternura... esses teus beijinhos repenicados que me atiravas com um "xau-xau" cheio de meiguice, nas nossas breves despedidas...

Os beijinhos "com pezinhos de lã", que me semeavas no rosto ensonado, quando, pela manhã, saltavas da tua caminha para a minha!

Meu Deus!!!

Porque ofuscaste o meu raiozinho de Sol? A brisa cálida que me enxugava as lágrimas quando eu sofria, onde está?

Restaram-me dois pedacinhos de Sol e Céu, é certo, mas como poderei viver sem o tão luminoso terceiro? Sem o precioso Anjo que me havias confiado? Que fiz eu para não O merecer? Diz-me, meu Deus, eu faço tudo ou desfaço tudo, para que me devolvas o meu raiozinho de Sol!

...

Não!?... Nem Tu me podes conceder isso!! Ninguém nem nada me poderá conceder isso agora, porque é tarde, a noite vai cair e o tempo não perdoa...

É isso!!! Só uma coisa me poderia trazer de volta o meu pedacinho de alma: o Tempo! O Tempo que nos separa, que é mais forte que o mais forte muro que se poderia construir com os mais fortes materiais terrenos! O Tempo, que se recusa a voltar atrás e aninhar-me nos braços a minha filhinha que perdi...

O Tempo, implacável e frio, que vai passando alheio à minha dor e engrossando a barreira que me separa do riso inebriante da minha florzinha cortada em botão!

O Tempo, que eu odeio, e que cada vez me separa mais dos preciosos momentos em que ela era minha!

Minha... Minha filhinha!!!

Brilha sempre, minha estrelinha cintilante, e quando o meu Tempo se tiver esgotado e me conceder passagem para Ti, vem esperar-me e iluminar-me o caminho!

Vem, vem, meu amor, não deixes que os meus olhos esgotem a luz da tua angélica imagem e guarda um cantinho no Céu para eu acabar de te criar e te dar todo o amor que congelou no meu coração e que só fundirá quando o teu calor, meu raiozinho de Sol, me aquecer o peito!

Adeus, minha filhinha adorada, espera por mim!

Mãe

15 de Janeiro de 1987

6 comentários:

Ângela Carrascalão disse...

Lembrei-me daminha filha... Perdi-a, tinha ela 24 anos, no dia 28 de Fevereiro de 1995.
Não há palavras para descrever a dor.
Um abraço

Produtora disse...

Olá, estou fazendo uma matéria sobre perda e gostaria de falar contigo sobre sua história, pode me mandar um e-mail: produtoratvsp@hotmail.com , muito obrigada!

Anónimo disse...

Em lágrimas pude apenas entender só um pouquinho da tua dor,pois tbm tenho um raio de sol em minha vida e sem ela acho que nada mais faria sentido,morreria aos poucos...

Anónimo disse...

Descreveste exatamente a dor que vai na alma de quem passou por isso. Minha ssituação é idêntica. Espero também poder reencontra-lá, na eternidade ?

Thay disse...

Meu raio de luz brilha a pouco mais de cinco meses e quando ela nasceu descobri um novo modo de viver. Hoje preparando uma mensagem para seu batizado descobri teu blog e me vi pensando como sobreviveria sem essa luz a iluminar meus dias e não consegui nem sequer imaginar. Mas gostaria de parabeniza´la. Não somente por ter sobrevivido a tamanha provação, mas por transformar a dor em uma homenagem diária para sua filha. Seu blog é lindo e por mais contraditório que pareça é cheio de vida, pq vc consegue nos transmitir muito sentimento. Que Deus te acalme a alma todos os dias.

Débora, mãe de Tauane disse...

Que Deus te console e te carregue no colo, tornando assim possível o teu caminhar. Tuas palavras são profundas e carrega o mais genuino do amor: o que sobrevive mesmo á distancia... Abraço carinhoso, de uma mãe que também entregou a Jesus o seu maior tesouro...