domingo, 4 de novembro de 2007

Remissão

Porquê?
Porque não fui atenta e preveni o risco?
Porque fui tão insensata e desvalorizei o perigo?
Porque fui tão lenta a compreender o que tinha acontecido?
Porque não fui inteligente para lidar com a situação?
Porque não te sacudi e te magoei mesmo, para evitar o mal maior?
Porque não gritei e movi montanhas?
Porque não exigi saber e exigi que soubessem?
Porque tolerei a demora e a impassividade?
Porque acreditei que o perigo estava controlado?
Porque não te segurei nos últimos momentos?
Porque te confiei a mãos que nada puderam fazer por ti?
Porque não tentei eu dar-te a minha vida?
Dar-te um sopro, um alento, um pedaço de mim ou toda eu, por ti, meu doce amor?
Porque te larguei e te deixei ir para longe dos meus olhos?
Porque fraquejaram as minhas pernas ao ouvir a terrível verdade?
Porque não corri para ti, te apertei ao peito, te transmiti a minha vida?
Porque não te supliquei que não me deixasses?
Porque não te disse que, se partisses, a minha alma se partiria de saudade?
Porque não te fiz sentir o meu imenso amor?
...para que, pelo menos, levasses impressa em ti essa certeza absoluta...
Porque não te embalei uma última vez e te ninei, até adormeceres para sempre?
Porque não te quis ver, para não acreditar?
Porque acreditar que me tinhas deixado, era insuportável...
E uma força gelada me pregava ao chão, me impedia de reconhecer na tua carinha angelical o expectro frio da Morte...
...Porque a ideia de ver-te ali, fria e inerte, tu, sempre tão irrequieta e viva, era inconcebível... era dilacerante demais...
...Ver-te, era assumir a verdade que eu não queria ver...
Eu juro que tentei, várias vezes, erguer-me da minha dor e ir até ti...
Mas não consegui...Perdoa-me, filha...
Perdoa-me por não te pegar ao colo pela última vez, não cobrir o teu rostinho amado de beijos...
Eu não te rejeitei, filha, só estava a rejeitar a tua morte...
...
Porquê?
Porque não te segurei sempre, enquanto pude, até te arrancarem de mim?
Porque não soldei com lágrimas o teu corpinho ao meu?
Porque não enchi os meus olhos da tua imagem?
Porque não me embriaguei com o teu cheiro de flor recém-colhida?
Porque não senti o teu frágil corpinho abandonar-se nos meus braços?
Porque não senti o peso da tua alma pura, emanar de ti e elevar-se ao Céus?
Porque não senti as tuas asas roçarem-me de leve, ao partires para sempre, meu Anjo?
Porque não te penteei eu mesma, uma última vez, os teus cabelos de ouro fino?
Porque não te vesti eu própria, o teu vestido branco bordado, com o mesmo empenho e cuidado com que to vesti no dia do teu baptizado?
...Com o mesmo carinho e enlevo com que sonhei vestir-te de noiva...
Porque não fui eu a deitar-te na tua derradeira cama, tão cheia de brancos e cetins frios?
...e te ajeitei os laços dos teus graciosos totós e a trança delicada dos teus dedinhos...
Porque não te aqueci eu, e te dei todos os beijos reservados para uma Vida completa... todo aquele tesouro de beijos que eu tinha amealhado para ti, nos meus sonhos de Mãe...
Porque não deixei que levasses as nódoas do meu pranto no teu vestido?
Porque não depositei as minhas lágrimas no relicário das tuas preciosas feições?
...nos cantos da tua boquinha-botão-de-rosa, nas tuas longas pestanas de seda, no relevo perfeito do teu narizinho delicado...
Para que levasses para sempre em ti, qualquer coisa física da tua desesperada mãe...
Porque deixei que te levassem de mim, que te fechassem no teu sono eterno, minha bonequinha adormecida?
Porque deixei que a Morte te roubasse a Vida que eu te dei?
Porque não soube preservar-te de todos os perigos e manter-te aqui?
...Comigo...
Porque é que o meu amor tão grande de Mãe não bastou para te tornar invulnerável?
...Porquê??

Perdoa-me...


(Escrito em 1988)



2 comentários:

Anónimo disse...

Muitas das suas perguntas, faço-as também a mim. Muito tocantes, os seus textos, por saber como é perder uma filha.
Beijo,
Fátima (mamãããã!!!)
mfcf.blogs.sapo.pt

Anónimo disse...

Amo-te muito... Apesar de tudo o que te possa dizer... Sem ti não sou nada neste mundo! Sei que serás sempre a pessoa que me estenderá a mão quando eu mais precisar... Bjinhos do filho que te adora acima de tudo
Betinho